ILHAS OCEÂNICAS: ÚLTIMAS A SEREM OUVIDAS, PRIMEIRAS A PARTIR
A vila de Natuvu fica ao final de uma longa estrada de terra, ao norte de Fiji. O que nos recebe na chegada, antes de qualquer pessoa, simboliza o que iriamos conhecer a partir dali: uma árvore de aproximadamente 10 metros, caída no chão, com suas raízes expostas – provavelmente arrancadas pelo último vendaval. Com 30 famílias, sem energia elétrica e nem sapatos nos pés, essa vila é banhada pelo mar e dele garante toda a sua sobrevivência. Para entrar, temos que contornar o espaço residencial pela areia para pedir a permissão de entrada ao chefe. Somente depois podemos cruzar por dentro da vila. Ele nos recebe sentado com as pernas cruzadas, e nos dá as boas-vindas rapidamente, em uma cerimônia de sevusevu, onde o entregamos a kava, uma raiz tradicional que, quando presenteada, simboliza respeito as pessoas de maior status. Saímos de sua casa e, de longe, vemos algumas mulheres da vila trabalhando na grande extensão de areia aberta pela maré seca. Elas replantam árvores de mangue, uma por uma.
Em 2021, Fiji foi classificada globalmente entre os 15 países com maior risco de desastres climáticos. O aumento do nível do mar, intensificação de ciclones e grandes inundações, todos efeitos das mudanças climáticas, forçaram Fiji a realocar 6 vilas, e mais 46 aguardam recursos para o mesmo fim. A realocação é sempre a última das alternativas e não é nada trivial, pois não se está somente movendo casas, mas sim quebrando um vínculo entre os moradores com a sua terra. Tuvalu, uma nação ao norte de Fiji, majoritariamente composta de atóis, declarou que mesmo que o seu território físico fique embaixo d´água, ele não deixará de ser um país, modificando a definição de Estado em sua constituição. Isso revela que a conexão dos povos de ilhas oceânicas com a terra não é simplesmente física, mas também emocional e espiritual.
Para que a realocação seja evitada, o governo de Fiji lançou em 2021 o inédito Climate Change Act, um documento legalmente vinculativo que define o desenvolvimento e implementação de medidas e políticas climáticas de curto a longo prazo. Essas ações têm o objetivo de minimizar maiores impactos negativos nas comunidades costeiras, que representam 75% população do país. O replantio do manguezal – sistema que garante uma barreira física entre as grandes ondas, é uma dessas estratégias. Outra semelhante encontramos na vila de Daliconi, no Lau Group, leste de Fiji, onde a comunidade está construindo quebra-mares naturais feitos de sebes de mangue, pedra, pedra-sabão, solo argiloso e capim.
As estratégias adotadas pelo governo foram aquelas que compõe as chamadas Soluções Baseadas na Natureza (SbN): ações para proteger, gerir de forma sustentável e restaurar ecossistemas naturais e modificados, que também abordem os desafios sociais de forma eficaz e adaptativa (IUCN). A escolha de usar SbN não foi por acaso. Os povos de ilhas oceânicas carregam conhecimentos tradicionais e ancestrais, todos tecidos a partir de sua intensa interação e harmonia com a natureza. O povo fijiano, há séculos, já aplicavam estratégias modernas de gerenciamento costeiro, como o zoneamento. Os iQoliqoli são áreas demarcadas em que a pesca é permitida, e essa área vai mudando ao longo do tempo, dependendo do tamanho do estoque pesqueiro. Além disso, a gestão e a governança fazem parte da cultura pesqueira de Fiji, onde os chefes trabalham com os membros das suas comunidades para governar a utilização dos recursos marinhos.
Os conhecimentos tradicionais, infindáveis e que permeiam todo o globo, desde as ilhas oceânicas até o meio da Amazônia, são a ponte que nos conecta com um futuro sustentável. Entretanto, só damos voz a esses povos quando queremos seus depoimentos sobre os desastres, e os esquecemos quando sentamos em salas fechadas em convenções internacionais para discutir estratégias e soluções.
Há anos escutamos falar sobre mudanças climáticas. E o futuro que chegou é tão cruel, que as vezes a única saída para seguir em frente, é adormecer a angústia e não permitir o mergulho mais profundo no que essa realidade movimenta dentro de nós. Mas o dia em que visitamos a vila de Natuvu foi diferente. Presenciar as mulheres replantando um mangue por vez nos tirou da apatia e nos tocou em um lugar potente, nos impulsionando para frente. Ao mesmo tempo que nos indignamos ao ver quem menos emite pegada de carbono sofrendo as maiores consequências, nos lembramos pelo o que e por quem ainda vale a pena lutar. É hora de sentar de pernas cruzadas no chão e, com os ouvidos atentos, escutar a natureza e quem, desde sempre, tem falado por ela.
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